14.4.06

na quinta-feira santa - em torno da paixão 04

Cheguei atrasado. Minha vida me empurrou pra outros rumos e outras paixões. Não consegui chegar a tempo, mas um pedaço de mim estava lá na Praça do Bispo. Corri pra lá. Cheguei por volta das 21:20 h. E ouvi o final da cena do endemoniado enquanto me aproximava da arena. Como eu não tinha ingresso para hoje, já estava bem conformadinho – não poderia entrar e ver o espetáculo de perto. Havia algumas pessoas junto às catracas de entrada. De lá, elas assistiam à peça. Juntei-me a elas e vi toda a cena da Entrada em Jerusalém. O público aplaude quando Jesus passa, carregado em andor, e seguido por um cortejo que sacode seus ramos verdes, enquanto tapetes floridos são estendidos no chão para o Cristo, triunfante, passar.

Como é clássico, depois do triunfo segue-se a queda. A cena da Santa Ceia tem um efeito visual bastante interessante. O congelamento das imagens, quando cada apóstolo se posiciona de uma maneira – com em Jesus Christ Superstar, o filme – é muito bem re-utilizado, lembrando um quadro renascentista. No entanto, acho a cena longa, talvez, por ela ser sem texto, mas, talvez, também seja apenas uma implicância. È fantástico quando Jesus aproxima-se de Judas para lhe dar o pão e todo o corpo de Judas (Antonio Deol) enverga-se, dessa inércia ele foge, sendo seguido pelos demais apóstolos. Essa tensão-distensão está sempre presente na construção física do personagem, e é interessante reparar nela em vários momentos do espetáculo. Enquanto Jesus sofre em agonia no Horto, arma-se a cena seguinte com Judas e a primeira aparição dos sacerdotes do Templo. A caracterização destes personagens é genial: são cinco ao todo – na realidade quatro atrizes, entre elas Soia Lira (como Caifás), que está dando um show – as personagens entram vestidas de burca preta, que se transforma no manto dos sacerdotes, o efeito plástico é bastante eficaz, principalmente, quando elas se contrapõem ao figurino mais leve e claro dos dançarinos do bacanal de Herodes.

Jesus é preso, levado diante de Caifás, apresentado a Pilatos e finalmente chega ao palácio de Herodes. Essas três cenas apresentam ação em simultaneidade: enquanto Jesus sofre, Judas acerta os detalhes da traição com os sacerdotes, de lá todos seguem à casa de Caifás, enquanto Pedro e Judas se enfrentam – na cena posterior à negação – há uma narração, resolve-se a ida à Pilatos – os sacerdotes apontam para Jesus e Pilatos, que aparece em uma janela da igreja – , começa o bacanal de Herodes, enquanto todos dançam sensualmente, aproxima-se os sacerdotes que interromperão a festa. È de se destacar a maneira como a direção consegue manter encadeada toda uma longa seqüência, envolvendo vários quadros, em ação simultânea, um feito que minora o adensamento narrativo de algumas partes do texto dramatúrgico.

Vou pular para, talvez, a seqüência mais simples e mais forte do espetáculo:a Via Sacra. Como resolver aquilo que é mais tradicional e mais estereotipado em qualquer espetáculo sobre a paixão de Cristo? Mais ainda, como resolver esta seqüência quando ela marcada pela narração proferida pelos quatro evangelistas? Detalhe: no meu texto, Mistérios da Paixão, essa seqüência também era narrativa, na realidade, sugeria-se a intervenção de um cantador que narraria os passos da paixão enquanto um retábulo expunha cada estação, enquanto os atores do auto dentro do auto fariam simples movimentos – toda essa seqüência foi reconstruída pela direção por julgar nenhum pouco teatral. Curiosamente, a direção atual se viu diante do mesmo problema. E resolveu-o lindamente. Os passos da paixão são acompanhados pela narração dos quatro evangelistas, pelo Anjo Gabriel que repassa os números de cada estação, marcando-as. A arena vira uma grande espiral – representação de um destino que não mais permite escapatória e que vai, cada vez mais, passo a passo, se fechando em si mesmo. Essa espiral vai se construindo com os romeiros que, acompanhando a Via Sacra, vão se jogando no chão a cada passo, marcado por um rufar de alfaia. È muito difícil por em palavras o que acontece: os protagonistas de cada passo executam o mínimo de movimentos, para atingir o máximo de expressividade, levada a um máximo de tensão a cada parada que transforma em quadro estático aquela estação que se narra. O efeito visual e dramático é lindo. Levando-nos a um poço, talvez, sem fundo, em que somos obrigados a refletir sobre aquilo que configura os sentidos da morte do Cristo, conseqüência de seu martírio. A crucificação também é um capítulo à parte: ao há o uso da cruz, os atores são elevados sobre os ombros de outros que servem de base, enquanto o restante do elenco permanece encobrindo esta base e, estaticamente, expondo no corpo, movimentos de agonia e dor. Após a morte do Cristo, a cruz transfere-se para os braços do povo, que carrega a cruz, em agonia. Ontem ela girou sobre o eixo, mas dias anteriores ela gemia e tremia. E o resto é silêncio. Depois falo mais. O silêncio e a escuridão tomam conta da arena e de mim.

Em tempo: terminado p espetáculo, abracei minha amiga Eleonora Montenegro. Nunca senti aquilo, a energia da atriz estava sobre a roupa, em cada centímetro. Era perceptível... e foi arrepiante. Literalmente. Será ela uma deusa?