17.10.08

Rosário da Vida

Como se conta a história de uma vida? Palavras se organizam em frases que formalizam orações. Gestos, lembranças, memórias de nós mesmos, dos que nos cercam e cercaram. Então, toma-se a vida e, em feitio de oração, vai se tecendo fatos e se compondo e re-compondo, ordenadamente, tudo num rosário de orações, ou lembranças, ou dores, ou amores. De solidão.

O espetáculo Incelença, com o ator Chico Oliveira, de Campina Grande-PB, envereda-se por estes caminhos para nos contar a história de vida – meio fantasiosa, clivada de memórias, marcada pela dor da solidão do presente e pelas perdas do passado – de Seu Olimpo, um artista itinerante que se acompanha de uma trupe de bonecas, parceiras de palco, de vida e de silêncio. O que vemos no palco é centralizado pela presença do ator que, numa composição física singular do velho Seu Olimpo, vergado pelo tempo e por si mesmo, apresenta-nos, diante de uma praça hipotética o seu espetáculo e da sua Cia. Do Rosário. O diálogo entre palco e platéia é essencial ao desenvolvimento do que se vê: soma de teatro de rua e de improviso, este sim bem guiado por um roteiro rígido, penso sempre que este espetáculo comunicaria imensamente para além dos limites limitadores do velho palco italiano. Óbvio que se perderia a luz e aspectos da sonoplastia se dispersariam, mas a essência do que se vê tem cheiro de rua e um tanto do pó da estrada. A rua e a estrada são o lugar mesmo de Seu Olimpo. Chico Oliveira, seguríssimo do que faz, tem a difícil tarefa de segurar a platéia com um monólogo, divido em cinco blocos, na realidade, quadros que se encadeiam no fio do rosário que vimos comentando.

O ator, para além de sua imensa versatilidade física e vocal – veja-se a maneira como ele pode cantar um coco, num allegro vivace, ou, logo depois, um aboio melancólico ou, ainda, entoar a cadência repetitiva da incelença e, depois de tudo, retornar, sempre, ao registro específico da personagem, este sim, arrastado, baixinho, quase tímido –, consegue um feito impar: transitar com a mesma habilidade entre o risível ou mesmo o quase-grotesco de episódios prosaicos da vida cotidiana do Nordeste por onde ele caminha – com combinações de piadas feitas, baseadas em lugares comuns de nossa cultura; incursões pelo baixo corpóreo e pelo universo bem próximo de nossos ambientes rústicos, risíveis não por contraste ao alto, mas por sua singeleza e inocência – e, logo em seguida, numa manipulação de tempo e de sensações, consegue fazer este mesmo se distender ou se tensionar, quando a uma piada logo se contrapõe a dura realidade, e logo nos perguntamos: por que rimos?

A história de solidão, sim, pois este pra mim é o tema do espetáculo, bem resguardado numa fala solta, sem muita pretensão, no meio do terceiro bloco do espetáculo, quando se discutem os “perigos da morte”. Seu Olimpo nos fala sobre a sensação de fim, seja o fim do espetáculo e a conseqüente solidão do camarim, seja o medo da morte diante da solidão da casa. Neste bloco, com uma das bonecas, tanto se fala do tradicional número de Monga, a mulher gorila, como também se executa um número de facas. É fantástico ver como o ator consegue nos fazer transitar entre o externo – o manipulador das facas – e o interno à caixa – a sensação da boneca, esfaqueada – mediante seu trabalho físico.

Acompanhamos, com ele e suas bonecas, as romarias do Pe. Cícero do Juazeiro, cheiros e gostos da infância, entramos no mundo “da interpretatividade” e, neste mundo, somos levados a dores de amores, porque, afinal, “o amor embaça as vistas” e passamos a ver o mundo diferente, mas, pior mesmo é a dor “do espinho que atravessou o meu coração e ele sangrou”, quase mantra que me acompanha desde a saída do teatro. E, mais uma vez, o ator não nos permite entrar na dor, afinal, dor pra quê, estamos vivos!?

O último bloco é o do “melodrama”. É neste momento que se trava a relação de eterno retorno e quando se instaura a relação, melodramática, do ciclo de morte e vida da boneca: a de pano, destruído pela tia, durante a infância, visto não ser brinquedo de menino; e a boneca, inteira, sólida, identidade nova e construída de um homem que se percebe no mundo, gravada agora no corpo e na alma. Aqui, o espetáculo se fecha, dialogando com uma narrativa em off que o abre. Este seria o único reparo. A narrativa retoma a própria história do menino que brincava de bonecas e instaura uma antecipação do desfecho. Isto não é de todo ruim, mas desloca a nossa atenção pela demora excessiva da narração do que é o mais importante: a arrumação da companhia.

De resto, só o resto: ir ao teatro, e ver bom teatro, sempre é bom demais!

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

well, well.. parece bem interessante a peça;
mas acho que esses fatos ficam, de um jeito ou de outro, desordenadíssimos, de forma que orações ou dores ou etc viram "e" isso, tudo meio caleidoscópico, carrosséico.
talvez esse carrossel é o motivo de entrarmos na dor, entrarmos no riso, entrarmos em tanta coisa mais: pq estamos vivos, sim, é um jeito de dizer; pq, por segundos ou horas, nos sentimos vivos; pq no mesmo design há jeitos de sangrar e há jeitos de estancar. E bombear. E pulsar mais. E levar tudo isso num cofre-coração. Claro que uma aventura dessas dá um medo. Até porque entramos e saímos dela sem instruções e sós. Mas se no meio ("no princípio era o meio") há alternância de tensões e distensões, pode-se, quem sabe, esquecer o frio na barriga e estar pronto para chorar, ficar sério, sorrir, gargalhar, na roda-viva. talvez agora ordenadamente. talvez.
;)

11:08 AM  

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