13.3.08

Quebra- Quilos: quebra metro, quebra tudo ou Eu sei não gritar ou uma experiência de teatro não-dramático

Desde a primeira vez que fui a um dos ensaios abertos da peça Quebra-Quilos, do Coletivo de Teatro Alfenim, em cartaz no casarão da Escola Piollin, em João Pessoa, vieram-me à mente as lições que tomei com a professora Iná Camargo Costa, em seu livro A hora do teatro épico no Brasil (Graal, 1996) no que se refere a esta forma teatral. Num exame que começaria em 1958, com Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, ainda podemos atestar a força produtiva da dramaturgia em sua viagem rumo ao épico, mesmo que, como diria o crítico Roberto Schwarz, tal forma tenha se tornado uma espécie de artigo de consumo ou grife, em dados momentos. Assim, não é nada curioso que tanto a direção quanto a dramaturgia (mesmo que construída em processo colaborativo com o elenco) sejam assinadas por Márcio Marciano, egresso da Companhia do Latão, de São Paulo, porto seguro do teatro épico-dialético no Brasil, nos últimos dez anos. Daí, talvez, também, as várias estranhezas: aspectos concernentes ao assunto que, pela perspectiva de abordagem, tornam-se, mediante a formalização estética, estranhos aos nossos palcos e, conseqüentemente, a utilização na cena de procedimentos e técnicas que nossos atores não estão, de todo, habituados, revelando, talvez, traços de um momento singular e ainda difícil de ser avaliado de nossa cena teatral, marcada em suas últimas estréias por diálogos de nossos atores com diretores vindos de outras experiências e espaços geográficos que se distanciam das nossas demandas autóctones. Mas isso já seria uma outra reflexão inteira. Todavia, aqui, a questão principal é que o espetáculo resulta em algo que vale (e muito!) a pena ver.
Quebra-Quilos debruça-se sobre a revolta popular que ganhou este nome na província da Parahyba, nos idos de 1874, quando se impôs o sistema importado da França de medidas em quilos, litros e metros para mercadorias comercializáveis. Gota d'água de um contexto em que os impostos, até mesmo pelo chão onde se depositavam mercadorias, ou as regras do alistamento militar colocavam o povo em um beco sem saída, esta revolta tem episódios como a queima de arquivos públicos, a invasão de cadeias e destruição das medidas – o que levará à repressão violenta contra os sediciosos. Quem vai ao teatro esperando ver uma representação realista do conflito não a encontrará. E é aí que mora a questão: a ênfase recai sobre a relação entre as personagens envolvidas diretamente ou que estão à margem do conflito social, mantido à distância até os momentos finais da peça. Focalizamos mãe e filha tangidas pelo medo e pela necessidade; ou então acompanhamos a relação entre o cego e seu guia, com nome de filósofo cínico, todavia um dos personagens mais conscientes em torno do que se desenrola; ou a escrava alforriada que desafia a ordem com toda a desordem-organizada de sua gramática corpórea ainda medida em sistemas antigos; ou, então, experimentamos a perspectiva dos representantes do poder estabelecido, como o oficial aferidor, que é nada além do que mais um dos que apenas executa ordens que lhe são impostas.
O conflito só é referido. Mesmo quando chega ao primeiro plano ainda é na dimensão da narração ou da alegoria, com especial atenção às referências ao universo circense, mediante o distanciamento. Assim, marca-se a contradição entre este assunto e a forma dramática “em crise”. A revolta, ou sua repressão, não cabe na forma dramática tradicional. Irrompem os momentos épico-narrativos, seja nas referências aos episódios em torno dos revoltosos e da repressão a eles testemunhados por diversas personagens, como também o episódio final quando, definitivamente, a revolta (sempre no eixo do épico) atinge as duas personagens que marcam o núcleo dramático central da peça, Joaquina e Floriana, vividas por Zezita Matos e Soia Lira, respectivamente. É mediante certa leitura da relação entre estas atrizes e suas personagens que podemos entender, metonimicamente, não só a peça como este momento da cena paraibana. Se mãe e filha quanto mais fogem da revolta popular mais se aproximam dela, dialeticamente, as atrizes vão se desligando do dramático e se acostando ao épico, o que também se revela nas outras personagens e no trabalho dos outros atores. Em tempo: o elenco equilibra estes nomes de “peso” com outros que não desequilibram a balança, como Daniel Porpino, Roberta Alves, Sebastião Formiga, Daniel Araújo e Verônica de Sousa.
Quebra-Quilos revela, assim, em suas qualidades e em suas ausências, as contradições de nosso momento histórico, tanto no que diz respeito à correlação entre a matéria representada e o nosso cotidiano, como também nas contradições tangentes às forças produtivas em nossos palcos, na corda bamba entre a tradição construída e as novas experiências que surgem. A permanência, ou a síntese dessas questões, só ao tempo caberá a resposta.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Gostei do texto! :)
Todavia, acho que ficaria melhor de ler se você tivesse feito a introdução com um parágrafo menor. hehehe
A peça é realmente maravilhosa, foi bom ler teu texto, espero que, caso a veja novamente, consiga encontrar todos esses elementos que foram relacionados aqui.

Abraço!

1:15 AM  
Anonymous Anônimo said...

Bem, li.
Como comentei recentemente (você deve ter sabido), gosto de várias de suas críticas teatrais, ainda mais em meio às resenhas despreparadas, ou melhor, sem um foco, que circulam em alguns jornais. Isso se torna mais fértil quando elas se debruçam sobre peças daqui, na encenação até, pois é com críticas sérias que o diálogo entre atores, direção e nós, público, leva à ampliação dos nossas exigências e horizontes estéticos (já que, como me ensinaram, nesta, está incluída a ideologia). Acho que a produção pediria um artigo mais detalhado, até para que os grupos possam ser enriquececidos, não acha?!

1:18 AM  

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