27.6.06

Passagem das Horas

Com a licença de meu Mestre, FP [ou AC] -- estas celebração à minha vida vai assim mesmo, fora do concerto, pois desconcertado está o mundo -- o meu mundo!
[...] Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.Não sei se sinto de mais ou de menos, não seiSe me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,Consangüinidade com o mistério das coisas, choqueAos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz. Seja o que for, era melhor não ter nascido,Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida. Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços, É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro, Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...Que há de ser de mim? Que há de ser de mim? [...] Sentir tudo de todas as maneiras,Viver tudo de todos os lados,Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,Realizar em si toda a humanidade de todos os momentosNum só momento difuso, profuso, completo e longínquo. Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, Seja uma flor ou uma idéia abstrata,Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,Porque ser inferior é diferente de ser superior,E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,Basta que ela exista para que tenha razão de ser. Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido, (No mesmo abraço comovido)O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,O ladrão de estradas, o salteador dos mares,O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida. Beijo na boca todas as prostitutas,Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinosE a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.Tudo é a razão de ser da minha vida. Cometi todos os crimes,Vivi dentro de todos os crimes(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida). Multipliquei-me, para me sentir,Para me sentir, precisei sentir tudo,Transbordei, não fiz senão extravasar-me,Despi-me, entreguei-rne,E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos. Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros, Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas, Todos os chamamentos obscenos de gesto e olharesBatem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum). Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma! (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te, Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver, Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes, Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,Os seus half-holidays inesperados...Mary, eu sou infeliz...Freddie, eu sou infeliz...Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis, Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo, Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento, Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus! Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...Meu coração tribunal, meu coração mercado, Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,Meu coração banco de jardim público, hospedaria,Estalagem, calabouço número qualquer cousa(Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,Meu coração postigo,Meu coração encomenda,Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração. Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,E houve um segredo que me disseram todos os assassinos. [...]

Álvaro de Campos, 22-5-1916