9.10.07

De João Francisco à Mulata do Balacochê

Numa tarde um tanto nublada, na Serra da Borborema, resolva quebrar meu silêncio de meses. É o jeito, afinal, falar para alguém, mesmo que essa alguém seja um leitor que, virtualmente, existe. Acabo de assistir de novo "Madame Satã", de Karin Aïnouz e é o jeito tirar o chapéu e deitar os mais belos tecidos que tivermos, com muita lantejoula e areia prateada, pra ele passar por cima... Que coisa magnífica!
Não bastasse ser um filme sobre um personagem icônico da Belle Epoque carioca, das ruas da Lapa em inícios do século XX, Karin consegue fazer deste filme um belíssimo deleite visual. Confesso que desta segunda vez o filme para mim ainda fez mais sentido... Lembrava de João do Rio de suas crônicas sobre a gente alegre das ruas, sobre os cheiros dos cortiços, sobre carregadores, pobres, bêbados e equilibristas da escala social, que quase caiam para mais baixo do que abaixo. Lembrava de ruas do Maranhão, de uma saudosa São Luiz. Lembrava, afinal, de mim mesmo...
São atuações memoráveis: seja Lázaro Ramos, como a personagem título; seja Marcélia Cartaxo como Laurita ou o incrível perfil trazido à cena por Flavio Bauraqui, como Tabu. É este tripé que mais interessa naquele momento em João Francisco ainda não é Madame Satã, nome que ele ostentará após o carnaval de 1942. Temos apenas a triste-alegre vida de João, que ajuda a manter a prostituta, mãe de uma menina que ele cria como filha, e o travesti... todos sob seus cuidados. João é algo muito complexo do que um simples homossexual ou transformista -- João é um malandro, um capoeira, um homem terrível e temível. João é sensível, apaixonado, com alma de artista. João quer aplausos, quer festa no clube gran fino. Mas João é negro, é pobre e é homossexual coisas imperdoáveis. Na Lapa ele era alguém. No clube ele é ninguém.
É essa estranha transição que acompanhamos desde sua estada como assistente da atriz de cabaré, vivida por Renata Sorrah, até o seu próprio momento de glória, no Danúbio. João vai, aos poucos, trilhando os caminhos de sua própria história: da imitação do show que ele via toda noite e que remetia às mil e uma noites de Sherazade, com música francesa.... ele vai encontrado a Mulata do Balacochê e o Samba. Sendo que a gente também vai entendendo a vida de menos e de nãos a que ele está submetido: a cada momento de extrema felicidade advém a perda e a dor, a hulmilhação. João só não queria ser mal tratado. João queria apenas sambar, rir, brilhar com areia prateada e roupa colorida. João queria se 'endereitar'....
Madame Satã é imperdível!